Os grandes obstáculos às nossas realizações, à nossa liberdade e à satisfação com a vida com frequência derivam de nos quedarmos fixados a algo de passado.
Inquietações antigas – temores, ressentimentos, sentimentos de frustração – que nos mantêm zangados com a vida, muitas vezes numa espera estéril, em estados permanentes de medo ou numa crónica distração de si próprio.
Os anseios podem também assumir formas mais ternas, como por exemplo, esforços ou tentativas para ajudarmos os nossos pais, a nossa família ou os nossos conhecidos. Porque conferem um senso de virtude (ainda que cobiçosa), mais difícil se torna desenredar-se e assim persiste o alheamento de si próprio.
O processo psicológico pode descrever-se como se dentro de nós coexistissem vários eus, de diferentes etapas de vida, cada qual com os seus medos, reivindicações e decisões que estorvam. Permanecer capturado por um ou mais desses eus muitas vezes converte-se numa carga, uma carga que precisamos de soltar. Soltar a carga significa, e aqui está o busílis, apartar-se ou despedir-se de um dos eus que nos compõem.
Tal movimento de desprendimento às vezes só é possível através de um processo de conciliação com esse “eu antigo”. Como se ele amistosamente nos acenasse e dissesse “estou de acordo em deixar de fazer o resto do caminho contigo, não precisamos de continuar juntos”. Desta forma podemos deixar atrás partes que já não nos permitiam caminhar em direcção a mais, a mais de nós mesmos.
O que fazemos em psicoterapia? Criamos o contexto oportuno para escutar a teia dos nossos diferentes eus. E criamos condições para que algumas despedidas aconteçam.
A psicoterapia é um processo assistido, uma relação especial que ajuda a dirigir o conhecimento de si. Quando eficiente conduz a uma percepção mais clara sobre o que fazemos, como fazemos e sobre o que o motiva. Chegamos a uma compreensão sobre as respostas obsoletas que insistimos em utilizar. Esta compreensão opera uma transformação, leva à redução gradual do poder dessas respostas sobre as nossas intenções mais autênticas.
Gostaria contudo de enfatizar que apesar da situação especializada que a relação terapêutica pressupõe, é o indivíduo quem, em definitivo, realiza o trabalho de cura. O trabalho não pode prosseguir sem o seu intrínseco consentimento: para poder reconhecer a sua própria verdade (que lhe permite retirar as suas máscaras), para suster-se apesar do medo, da dor e do mal-estar que o processo possa nalguns momentos induzir. Também reconhecer que o desejo de uma mudança rápida é uma tentativa de auto-manipulação que visa o aperfeiçoamento precipitado de si, mas que perturba a grande aventura do resgate do seu ser.
Eva Jacinto
Porto, 01 Outubro 2024
Imagem: Dadu Shin, “Ripple”